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Aqui vou guardar alguns dos posts que escrevi no Blasfémias, é não só, e que pretendo ter «à mão». Não vai ter mais do que uma função de aquivo.




Pensamento liberal e neo-liberal e Doutrina Social da Igreja: “O regresso ao individualismo” (III)


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O regresso ao individualismo:

Mais do que uma análise histórica, que tem aqui apenas uma função de enquadramento, importa sobretudo reflectir sobre o presente e sobre o futuro.

O maior desafio do século XXI – e nesse ponto assiste-se a um cada vez maior alinhamento entre o pensamento liberal e católico – passa precisamente pela promoção de um regresso ao individualismo.

O individualismo tem sido – na minha perspectiva, como veremos, erradamente – excessivamente associado ao egoísmo. Tal radica na incompreensão da ideia central do liberalismo, pois se é verdade que se reclama a protecção da esfera intangível do indivíduo e da sua liberdade como pressuposto para a sua afirmação plena, tal não significa que esta corrente de pensamento se esgote no “Eu”: o indivíduo é apenas o ponto de partida para uma abordagem mais vasta.

A muitos dos presentes esta afirmação poderá soar estranha. Após mais de cem anos de experiências de pendor socialista e colectivista, a defesa do indivíduo e da sua liberdade surgem, na sociedade europeia, com uma conotação negativa (cf. O Caminho para a Servidão, F.A. Hayek, Lisboa, Teoremas, 1977). Se é verdade que, com o progresso económico verificado no século XIX, a consciência da liberdade se alargou a largas camadas das populações dos países industrializados (cf. hoc sensu, Hayek, op. cit.), a defesa intransigente do laisser faire contaminou a significação liberal do termo, ao mesmo tempo que abriu a porta para que, paulatinamente, certas sociedades fossem abandonando os princípios basilares do pensamento individualista.

Acresce que a palavra “Liberdade” tem sido usada com múltiplas significações, quantas vezes deturpando aquele que deveria ser, numa perspectiva liberal, o seu conteúdo essencial: o socialismo, v.g., no seu processo histórico de afirmação, a dada fase apropriou-se e transfigurou a expressão “Liberdade”; como bem identificou Hayek (cf. op. cit.):


O advento do socialismo seria [segundo os seus defensores] um salto do reino da necessidade para o reino da liberdade (…). Para que o homem pudesse ser verdadeiramente livre, o “despotismo da necessidade material” deveria ser vencido, e atenuadas “as restrições decorrentes do sistema económico”.
Esta noção de “Liberdade” mais não é do que uma mutação semântica resultante da fusão entre as palavras riqueza e redistribuição. O socialismo pretendia assim acelerar o processo económico, com o objectivo de antecipar as etapas que a revolução industrial não tinha ainda (pretensamente) permitido atingir, usando rótulos e expressões próprias do pensamento liberal. Foi com base na promessa de uma “maior liberdade” – leia-se, mais riqueza e sua subsequente redistribuição, que permitiria ultrapassar o estado de necessidade – que o socialismo seduziu diversos intelectuais e se afirmou como doutrina dominante.

Daí que em sociedades como a nossa, onde as doutrinas de base social (nas suas diversas acepções) estão enraizadas no subconsciente de uma boa parte dos cidadãos, não se estranhe que a palavra “redistribuição” esteja semanticamente associada a “desprendimento” e “generosidade”, ao mesmo tempo que “arbítrio” e “liberdade individual” são qualificados como “egoísmos”.

O mesmo processo ocorreu em relação à ideia de Justiça, a que se lhe acoplou um vazio mas poderoso adjectivo: “Social”. A um ponto tal que, como bem identificou Ayn Rand (no prefácio da sua novela “Anthem”), seja quase necessário, para se justificar uma conduta, catalogá-la de “social” e reconduzi-la a uma vaga ideia de “Bem Comum”:

“Social gains”, “social aims”, “social objectives” have become the daily bromides of our language. The necessity of a social justification for all activities and all existence is now taken for granted. There is no proposal outrageous enough but what its author can get a respectful hearing and approbation if he claims that in some undefined way it is for “the common good”. (Via A Arte da Fuga)


Não se quer, hoje e aqui, recuperar um individualismo atomista e exacerbado, onde se coloque – como acima se disse – um enfoque apenas no “Eu”. Tal terá de ser o ponto de partida para uma ordem espontânea, mas onde o indivíduo – ou a “pessoa” – tem necessariamente de ser um agente activo: pois numa sociedade em que os cidadãos, individualmente considerados, se demitem de participar; que não consegue constituir-se a partir da sua base, seja na família, seja na comunidade; seja em instituições intermédias de carácter voluntário; no fundo, uma sociedade que não é capaz de se organizar à escala do cidadão (no sentido que lhe foi dado por Tocqueville); está a “escancarar as portas” para que se instalem os mais distintos “colectivismos” (esta é, aliás, uma das maiores lições da nossa história recente). Quer-se uma sociedade construída de “de baixo para cima”, com menores escalas e maior interdependência, que consiga atenuar o impacto da burocracia e da alienação associadas aos processos colectivos de decisão, que resista à tentação de procurar orientar a acção dos indivíduos com base na cegueira da “Lei” e das “Grandes Opções do Plano”.

Trata-se, assim, de dar mais ênfase à generosidade, à iniciativa, ao princípio da subsidiariedade, do que à solidariedade, à coação, aos direitos e às ficções legais que nos conduziram até à sociedade “asséptica” em que vivemos.

O diagnóstico está mais do que feito; falta apenas coragem para dar um passo em frente: o Estado tem vindo a assumir, na nossa sociedade, um papel cada vez mais interventivo no plano da prestação social. Por decreto, criaram-se direitos, aos quais se conferiu dignidade constitucional, colocando-os, por via compulsiva, no topo das prioridades.

A sistemática transferência de funções relevantes de auxílio e assistência dos indivíduos e da sociedade civil para o Estado – à laia da “solidariedade” – tem tido, contudo, e com uma frequência preocupante, efeitos perversos.

Por um lado, os indivíduos são privados – por via da imposição crescente de impostos – de uma boa parte dos meios necessários para poderem, eles próprios, organizarem as suas vidas e, no limite, serem bondosos. A nossa liberdade de escolha, a possibilidade de promover a generosidade – aquela que possa resultar dos nossos actos voluntários – fica limitada aos recursos que sobejam após o pagamento de várias “dízimas”. Por outro lado, colocam-se os cidadãos, sobretudo os mais carenciados, na estrita dependência da “magnanimidade” estatal, naquilo que são os aspectos essenciais para a sua realização integral (na educação, na saúde, na habitação, nos transportes, na capacidade de assistir aos que lhe são queridos).

Mas não se pense que estamos apenas perante uma questão económica: o Estado, ao chamar a si a função “solidariedade”, financiando-se junto dos cidadãos, subtilmente – com “mãos de veludo”, como gosto de dizer – desresponsabiliza-os, torna-os cada vez mais “frios” (e, como se verá mais adiante, crescentemente amorais): destroem-se laços de afectividade, de familiaridade, de sentido comunitário e de vizinhança; é que por “lei” cabe ao Estado cuidar de cada um de nós; os impostos são o preço a pagar para que o cidadão se “libere” dos seus deveres de assistência. A “solidariedade” é apresentada como uma noção abstracta, de natureza “constitucional”, executada por entes orgânicos – por “instituições” e por “profissionais” – a partir de directrizes definidas por via legal e política; é algo que nasce na “esfera dos direitos”, que se “impõe”, que não frutifica na relação humana; não há sequer espaço, pelas próprias circunstâncias em que é praticada, para o conhecimento do “Outro”: falta-lhe a dimensão afectiva que só existe na generosidade praticada em liberdade, isto é, manifestada em actos voluntários de indivíduos concretos. O “Welfare State” – e todas as correntes que o suportam – conduz à desresponsabilização dos indivíduos (quer eles queiram, quer não), subroga-se nos seus deveres fundamentais, centraliza a prestação, esvazia a sociedade civil das suas funções e desagrega o tecido social.

Assistimos, assim, a um paradoxo: os cidadãos, por um lado, estão limitados na sua capacidade de serem generosos, porque uma boa parte dos recursos lhe são sonegados por via dos impostos; por outro lado, e do ponto de vista constitucional, é ao Estado que compete prestar e promover o bem-estar, dispondo dos meios para tal; pelo que legalmente se “libera” o indivíduo – repito, quer ele queira, quer não – do dever de assistência aos que lhe são próximos, potenciando egoísmos e privilegiando modos de vida sem laços nem raízes. Tudo em defesa da “Liberdade”, e de uma sociedade mais “Justa” e mais “Solidária”, obviamente.

As novas gerações – entre as quais, a minha – ignoram em boa medida que, se a moral é por essência um fenómeno de condução pessoal, ela só pode existir se a decisão se concentrar na esfera da autonomia individual.

Para lá do indivíduo, fora da responsabilidade pessoal, não há nem bondade nem maldade, nem possibilidade de mérito moral.

(...)

[Pergunto]

(...)

Será que existe um valor moral na decisão se não formos responsáveis pelos nossos interesses e livres para sacrificá-los?

Que altruísmo existe quando este é praticado à custa do esforço de terceiros?

A responsabilidade – não perante um superior, mas perante a própria consciência – a compreensão de um dever não imposto pela coacção, a necessidade de resolver qual das coisas a que damos valor devemos sacrificar a outra e aceitar as consequências da nossa decisão – eis aí a essência de toda a regra moral digna desse nome.

Todas estas ideias, apresentadas por Hayek (cf. op. cit.) nos anos 40, ganham no nosso contexto particular acuidade.

Numa sociedade recheada de meios o que falta é regressar à exigência: mas a uma exigência não imposta, nem assente em mecanismos de coacção. Existem hoje, como nunca, meios materiais, mas vivemos na ausência de uma verdadeira liberdade, que confronte o indivíduo com as suas responsabilidades, e motive o seu espírito de iniciativa.

Ou, como escreve Bento XVI, na sua Deus Caritas Est (28.b):

O amor — caritas — será sempre necessário, mesmo na sociedade mais justa. Não há qualquer ordenamento estatal justo que possa tornar supérfluo o serviço do amor. Quem quer desfazer-se do amor, prepara-se para se desfazer do homem enquanto
homem. Haverá sempre sofrimento que necessita de consolação e ajuda. Haverá sempre solidão. Existirão sempre também situações de necessidade material, para
as quais é indispensável uma ajuda na linha de um amor concreto ao próximo. Um Estado, que queira prover a tudo e tudo açambarque, torna-se no fim de contas uma instância burocrática, que não pode assegurar o essencial de que o homem sofredor — todo o homem — tem necessidade: a amorosa dedicação pessoal. Não precisamos de um Estado que regule e domine tudo, mas de um Estado que generosamente reconheça e apoie, segundo o princípio de subsidiariedade, as iniciativas que nascem das diversas forças sociais e conjugam espontaneidade e proximidade aos homens carecidos de ajuda. A Igreja é uma destas forças vivas: nela pulsa a dinâmica do amor suscitado pelo Espírito de Cristo. Este amor não oferece aos homens apenas uma ajuda material, mas também refrigério e cuidado para a alma — ajuda esta muitas vezes mais necessária que o apoio material. A afirmação de que as estruturas justas tornariam supérfluas as obras de caridade esconde, de facto, uma concepção materialista do homem: o preconceito segundo o qual o homem viveria “só de pão” (Mt 4, 4; cf. Dt 8, 3) — convicção que humilha o homem e ignora precisamente aquilo que é mais especificamente humano.
É este o regresso ao individualismo que me motiva. Que gostava, também, que fosse o vosso.

Rodrigo Adão da Fonseca

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